domingo, 28 de junho de 2009

Charles Baudelaire





A Vida Anterior






Muito tempo habitei sob átrios colossais

Que o sol marinho em labaredas envolvia,

E cuja colunata majestosa e esguia

À noite semelhava grutas abissais.



O mar, que do alto céu a imagem devolvia,

Fundia em místicos e hieráticos rituais

As vibrações de seus acordes orquestrais

À cor do poente que nos olhos meus ardia.



Ali foi que vivi entre volúpias calmas,

Em pleno azul, ao pé das vagas, dos fulgores,

E dos escravos nus impregnados de odores,



Que a fronte me abanavam com as suas palmas,

E cujo único intento era o de aprofundar

O oculto mas que me fazia definhar.




O Vampiro





Tu que, como uma punhalada,

Em meu coração penetraste,

Tu que, qual furiosa manada

De demônios, ardente, ousaste,



De meu espírito humilhado,

Fazer teu leito e possessão

- Infame à qual estou atado

Como o galé ao seu grilhão,



Como ao baralho o jogador,

Como à carniça ao parasita,

Como à garrafa ao bebedor

- Maldita sejas tu, maldita!



Supliquei ao gládio veloz

Que a liberdade me alcançasse,

E ao veneno, pérfido algoz,

Que a covardia me amparasse.



Ai de mim! Com mofa e desdém,

Ambos me disseram então:

"Digno não és de que ninguém

Jamais te arranque a escravidão,



Imbecil! - se de teu retiro

Te libertássemos um dia,

Teu beijo ressuscitaria

O cadáver de teu vampiro!



Remorso Póstumo






Quando fores dormir, ó bela tenebrosa,

Em teu negro e mamóreo mausoléu, e não

Tiveres por alcova e refúgio senão

Uma cova deserta e uma tumba chuvosa;



Quando a pedra, a oprimir tua carne medrosa

E teus flancos sensuais de lânguida exaustão,

Impedir de querer e arfar teu coração,

E teus pés de correr por trilha aventurosa,



O túmulo, no qual em sonho me abandono

- Porque o túmulo sempre há de entender o poeta -,

Nessas noites sem fim em que nos foge o sono,



Dir-te-á: "De que valeu, cortesã indiscreta,

Ao pé dos mortos ignorar o seu lamento?"

- E o verme te roerá como um remorso lento






A alma do outro mundo





Como os Anjos de ruivo olhar,

À tua alcova hei de voltar

E junto a ti, silente vulto,

Deslizarei na sombra oculto;



Dar-te-ei na pele escura e nua

Beijos mais frios que a lua

E qual serpente em náusea fossa

Te afagarei o quanto possa.



Ao despontar o dia incerto,

O meu lugar verás deserto,

E em tudo o frio há de se pôr.



Como os demais pela virtude,

Em tua vida e juventude

Quero reinar pelo pavor

As Jóias





A amada estava nua e, por ser eu seu amante,

Das jóias só guardara as que o bulício inquieta,

Cujo rico esplendor lhe dava esse ar triunfante

Que em seus dias de glória a escrava moura afeta.



Quando ela dança e entorna um timbre acre e sonoro,

Este universo mineral que à luz figura

Ao êxtase me leva, e é com furor que adoro

As coisas em que o som ao fogo se mistura.



Ela estava deitada e se deixava amar,

E do alto do divã, imersa em paz, sorria

A meu amor profundo e doce como o mar,

Que ao corpo, como à escarpa, em ondas lhe subia.



O olhar cravado em mim, como um tigre abatido,

Com ar vago e distante ela ensaiava poses,

E o lúbrico fervor à candidez unido

Punha-lhe um novo encanto às cruéis metamorfoses.



E sua perna e o braço, a coxa e os rins, untados

Como de óleo, imitar de um cisne a fluida linha,

Passavam diante de meus olhos sossegados;

E o ventre e os seios, como cachos de uma vinha,



Se aproximavam, mais sutis que Anjos do Mal,

Para agitar minha alma enfim posta em repouso,

Ou arrancá-la então a rocha de cristal

Onde, calma e sozinha, ela encontra pouso.



Como se a luz de um novo esboço, unidade eu via

De Antíope a cintura a um busto adolescente,

De tal modo que os quadris moldavam-lhe a bacia.

E a maquilagem lhe era esplêndida e luzente!



- E estando a lamparina agora agonizante,

Como na alcova houvesse a luz só da lareira

Toda vez que emitia um suspiro faiscante,

Inundava de sangue essa pele trigueira.




Perfume Exótico





De olhos fechados, quando, alta noite, no outono,

respiro o cheiro bom dos teus seios fogosos,

Vejo entreabrir-se além de cenários deleitosos

Cintilando o ardor de um sol morno de sono:



Uma ilha preguiçosa e molenga e sem dono

Em que há árvores ideais e frutos saborosos;

Homens de corpos nus, finos e vigorosos,

Mulheres cujo olhar tem franqueza e abandono.



Guiado por teu perfume às paragens mais belas

Vejo um porto arquejar de mastros e velas

Ainda tontos talvez da vaga alta que ondula



Enquanto um verde aroma dos tamarineiros,

Que passeia pelo ar que aspiro com gula,

Se mistura em minha alma à voz dos marinheiros.

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